O que ele fez antes dos 30 anos? A BĂblia nĂŁo conta. Mas a histĂłria e a arqueologia tĂŞm muito a dizer.
O Novo Testamento contĂ©m 27 livros, 7 956 versĂculos e 138 020 palavras. E uma Ăşnica referĂŞncia Ă juventude de Jesus. O Evangelho de Lucas nos conta que, aos 12 anos, ele viajou com os pais de NazarĂ© a JerusalĂ©m para celebrar o Pessach, a Páscoa judaica. Quando JosĂ© e Maria retornavam a NazarĂ©, perceberam que Jesus tinha ficado para trás. Procuraram o garoto durante 3 dias e decidiram voltar ao Templo, onde o encontraram discutindo religiĂŁo com os sacerdotes. "E todos que o ouviam se admiravam com sua inteligĂŞncia" (Lucas 2:42-49).
Isso Ă© tudo. Jesus sĂł volta a aparecer no relato bĂblico já adulto, por volta dos 30 anos, ao ser batizado no rio JordĂŁo por JoĂŁo Batista. É quando o conhecemos realmente. Da infância, as Escrituras falam sobre o nascimento em BelĂ©m, a fuga com os pais para o Egito - para escapar de uma sentença de morte impetrada por Herodes, rei dos judeus - e a volta para NazarĂ©. Da vida adulta, o ajuntamento dos apĂłstolos e a pregação na Galileia, alĂ©m do julgamento e da morte em JerusalĂ©m. Mas o que aconteceu com Jesus entre os 12 e os 30 anos? Qual foi sua formação, o que moldou seu pensamento nesses 18 "anos ocultos"? Afinal, o que ele fez antes de profetizar na Galileia?
A notĂcia para quem deseja reconstruir o Jesus histĂłrico Ă© que novas análises dos Evangelhos, documentos histĂłricos e achados arqueolĂłgicos nos dĂŁo pistas sobre a sociedade da Ă©poca. E dessa forma podemos chegar mais perto de conhecer o homem de NazarĂ©. E entender o que passava em sua cabeça.
O pedreiro cheio de irmĂŁos
Uma coisa Ă© certa. Aos 13 anos, Jesus celebrou o bar mitzvah, ritual que marca a maioridade religiosa do judeu. E Ă© bem provável que ele tenha seguido a profissĂŁo de JosĂ©, seu pai. Carpinteiro? Talvez nĂŁo. "Em Marcos, o mais antigo dos Evangelhos, Jesus Ă© chamado de tekton, que no grego do sĂ©culo 1 designava um trabalhador do tipo pedreiro, nĂŁo necessariamente carpinteiro", diz John Dominique Crossan, um dos maiores especialistas sobre o tema. Para o historiador, os autores de Mateus e Lucas, que se basearam em Marcos, parecem ter ficado constrangidos com a baixa formação de Jesus. E deram um jeito de melhorar a coisa. Mateus (13:55) diz que o pai de Jesus Ă© que era tekton. E Lucas omitiu todo o versĂculo.
As mesmas passagens de Marcos e Mateus informam que Jesus tinha 4 irmĂŁos (Tiago, JosĂ©, SimĂŁo e Judas), alĂ©m de irmĂŁs (nĂŁo nomeadas). Mas dá para ir mais longe a partir dessa informação. "Se os nomes dos Evangelhos estĂŁo corretos, a famĂlia de Jesus era muito orgulhosa da tradição judaica. Seus 4 irmĂŁos tinham nomes de fundadores da nação de Israel", diz a historiadora Paula Fredriksen, da Universidade de Boston. "Seu prĂłprio nome em aramaico, Yeshua, recordava o homem que teria sido o braço direito de MoisĂ©s e liderado os israelitas no ĂŞxodo do Egito, mais de mil anos antes."
Assim, a famĂlia teria pelo menos 9 pessoas, mas nem por isso era pobre. NazarĂ© ficava a apenas 8 km de SĂ©foris - um grande centro comercial onde o rei Herodes, o Grande, governava a serviço de Roma. Com a morte dele, em 4 a.C., militantes judeus se revoltaram contra a ordem polĂtica. Deu errado: o general romano Varus chegou da SĂria para reprimir os rebeldes. E seu amigo Gaio completou o serviço, queimando a cidade. "Homens foram mortos, mulheres estupradas e crianças escravizadas", diz Crossan. Mas a destruição de SĂ©foris teve um lado positivo: Herodes Antipas, filho do "o Grande", transformou o lugar num canteiro de obras. Isso trouxe uma certa abundância de empregos para a regiĂŁo. Um pequeno boom econĂ´mico. EntĂŁo o ambiente ao redor da famĂlia de Jesus nĂŁo era de privações. "A reconstrução da cidade deve ter gerado muito trabalho para JosĂ©", diz Paula Fredriksen.
Jesus nasceu no ano da destruição da cidade, 4 a.C. Ou perto disso. O Evangelho de Mateus diz que Jesus nasceu no tempo de Herodes, o Grande (4 a.C. ou antes). Lucas coloca o nascimento na Ă©poca do primeiro censo que o ImpĂ©rio Romano promoveu na Judeia. E isso aconteceu, segundo as fontes histĂłricas romanas, em 6 a.C. A Ăşnica certeza, enfim, Ă© que "foi por aĂ" que Jesus nasceu. E que o Ăłdio contra o que os romanos tinham feito em SĂ©foris permeava o ambiente onde ele viveu. "NĂŁo Ă© difĂcil imaginar que Jesus pensou muito sobre os romanos enquanto crescia", diz Crossan.
Na década de 20 d.C., quando Jesus estava nos seus 20 e poucos anos, o sentimento antirromano cresceu mais ainda. Pôncio Pilatos assumiu o governo da Judéia cometendo o maior pecado que poderia: desdenhar da fé dos judeus no Deus único.
Mas, em vez de se unir contra o romano, os judeus se dividiram em seitas. Os saduceus, por exemplo, eram os mais conservadores. Os fariseus eram abertos a ideias novas, como a ressurreição - quando os justos se ergueriam das tumbas para compartilhar o triunfo final de Deus. Os essênios viviam como se o fim dos tempos já tivesse começado: moravam em comunidades isoladas, que faziam refeições em conjunto seguindo estritas leis de pureza. Já os zelotes defendiam a luta armada contra os romanos.
Em qual dessas seitas Jesus se engajou na juventude? Não há consenso entre os pesquisadores. Para alguns, porém, existem semelhanças entre a dos essênios e o movimento que Jesus fundaria - ambas as comunidades viviam sem bens privados, num regime de pobreza voluntária, e chamavam Deus de "pai". Essa hipótese ganhou força com a descoberta dos Manuscritos do Mar Morto, em 1947. Eles trouxeram detalhes sobre uma comunidade asceta de Qumran, que viveu no século 1 e estaria associada aos essênios. O achado ar-queológico não provou a ligação entre Jesus e essa seita. Até porque os essênios eram sujeitos reclusos, ao passo que Jesus foi pregar entre as massas da Galileia e Jerusalém.
Jesus podia nĂŁo ser essĂŞnio. Mas, para alguns estudiosos, seu mentor foi.
JoĂŁo, o mestre
Dois dos 4 Evangelhos começam a falar de João Batista antes de mencionar Jesus. É em Marcos e João. O homem que batizaria Cristo aparece descrito como um profeta que se vestia como um homem das cavernas ("em pelos de camelo") e que vivia abaixo de qualquer linha de pobreza traçável ("comia gafanhotos e mel silvestre").
Para a historiadora britânica Karen Armstrong, outra grande especialista no tema, isso indica que João pode ter sido um essênio. A vocação "de esquerda" que Jesus mostraria mais tarde, inclusive, pode vir da ligação do mestre João com a "sociedade alternativa" dos essênios. "É mais fácil passar um camelo pelo buraco de uma agulha do que entrar um rico no reino de Deus", ele diria mais tarde.
Os Evangelhos não falam de João como mestre de Jesus. Nada disso. Ele apenas reconhece Jesus como o Messias na primeira vez que o vê. Os textos sagrados também informam que ele usava o batismo como expediente para purificar seus seguidores, que deviam confessar seus pecados e fazer votos de uma vida honesta.
EntĂŁo Jesus aparece pedindo para ser batizado. Na BĂblia, esse Ă© o primeiro momento em que vemos o Messias apĂłs aqueles 18 anos de ausĂŞncia.
Depois de purificado nas águas do rio Jordão, Jesus parte para sua vida de pregação, curas e milagres. A vida que todos conhecem.
Para quem entende esse relato Ă luz da fĂ©, isso basta. Mas Ă© pouco para quem tenta montar um panorama da vida de Jesus, um retrato puramente histĂłrico de quem, afinal, foi o homem da Galileia que sairia da vida para entrar na BĂblia como o Deus encarnado. E uma possibilidade Ă© que Jesus tenha sido um discĂpulo de JoĂŁo Batista. DiscĂpulo e sucessor.
As evidĂŞncias: tal como JoĂŁo Batista, Jesus via o mundo dividido entre forças do bem e do mal. E anunciava que Deus logo interviria para acabar com o sofrimento e inaugurar uma era de bondade. Em suma: tanto um como o outro eram o que os pesquisadores chamam de "profetas apocalĂpticos". E se os Evangelhos jogam tanta luz sobre JoĂŁo Batista (Lucas fala inclusive sobre o nascimento do profeta, assim como faz com Jesus), a possibilidade de que a relação deles tenha sido mais profunda Ă© real.
O grande momento de oĂŁo Batista na BĂblia, porĂ©m, nĂŁo Ă© o batismo de Jesus. É a sua prĂłpria morte. Morte que abriria as portas para o nosso Yeshua, o Jesus da vida real, começar o que começou.
E Yeshua vira Cristo
JoĂŁo Batista podia se vestir com pele de animal e se alimentar de gafanhotos. Mas tinha a influĂŞncia de um grande lĂder polĂtico. Prova disso Ă© que morreu por ordem direta de Antipas. O Herodes jĂşnior tinha violado o 10Âş mandamento da lei judaica: "NĂŁo cobiçarás a mulher do prĂłximo". NĂŁo sĂł estava cobiçando como estava de casamento marcado com a ex-mulher do irmĂŁo, Felipe. JoĂŁo condenou a atitude do rei publicamente. E acabou executado.
Mateus deixa claro como Jesus, entĂŁo já com seus 12 discĂpulos e em plena pregação, recebeu a notĂcia: "Ouvindo isto, retirou-se dali para um lugar deserto, apartado; e, sabendo-o o povo, seguiu-o a pĂ© desde as cidades". Logo na sequĂŞncia, o Cristo emenda o maior de seus milagres. Sentido com a fome da multidĂŁo que ia atrás dele, pegou 5 pĂŁes e dois peixes (tudo o que os apĂłstolos tinham) e foi dividindo. Passava os pedaços aos discĂpulos, e os discĂpulos Ă multidĂŁo. "E os que comeram foram quase 5 mil homens, alĂ©m das mulheres e crianças" (Mateus 14:21). Horas depois, no meio da madrugada, outro milagre de primeiro escalĂŁo: Jesus apareceria para os apĂłstolos andando sobre as águas.
Esses episódios, claro, são parte da vida conhecida de Jesus (ou da mitologia cristã, em termos técnicos). Mas deixam claro: a morte de João foi importante a ponto de ter sido seguida de dois dos grandes episódios da saga de Cristo.
O filho do pedreiro assumiria o vácuo religioso deixado pelo profeta. Agora sim: Yeshua caminharia com as prĂłprias pernas. E começaria a virar Jesus Cristo. "Ele nĂŁo sĂł assumiu o manto de JoĂŁo, mas alterou sua doutrina. A diferença interessante entre JoĂŁo Batista e Jesus Cristo Ă© que Jesus ergueu o manto caĂdo de Batista e continuou seu programa mudando radicalmente sua visĂŁo", diz Crossan.
Ele continua: "João dizia que Deus estava chegando. Mas João foi executado e Deus não veio". Ou seja: para o pesquisador, Jesus teria ficado tão chocado ante a não-intervenção divina que mudou sua visão sobre o que o Reino de Deus significava.
"João Batista havia imaginado uma intervenção unilateral de Deus. Jesus imaginou uma cooperação bilateral: as pessoas deveriam agir em combinação com Deus para que o novo reino chegasse", diz o pesquisador. Ou seja: não adiantaria esperar de braços cruzados. O negócio era fazer o Reino dos Céus aqui e agora. Como? Primeiro, extinguindo a violência. Mas e se alguém me der um soco, senhor? "Ao que te ferir numa face, oferece-lhe também a outra" (Lucas 6:29). Depois, amando ao próximo como a ti mesmo, ajudando ao pior inimigo se for necessário, como fez o bom samaritano da parábola famosa... Em suma, a essência da doutrina cristã.
A natividade
Agora, um aparte: chamar de "anos ocultos" apenas a juventude de Jesus Ă© injustiça. O nascimento tambĂ©m Ă© uma incĂłgnita completa. A começar pela data de nascimento: 25 de dezembro era a data em que os romanos celebravam sua festa de solstĂcio de inverno, a noite mais longa do ano. NĂŁo porque gostassem de noites sem fim, mas porque ela marcava o começo do fim do inverno. Praticamente todos os povos comemoram esse acontecimento desde o inĂcio da civilização - nossas festas de fim de ano, a semana entre o Natal e o Ano-Novo sĂŁo um reflexo disso. O dia em que Jesus nasceu nĂŁo consta na BĂblia - foi uma imposição da Igreja 5 sĂ©culos depois, para coincidir o nascimento do Messias com a festa que já acontecia mesmo - com troca de presentes e tudo.
"Na verdade, nĂŁo sabemos nada histĂłrico sobre Jesus antes de sua vida pĂşblica, já que os dois primeiros capĂtulos de Mateus e Lucas [os que relatam o nascimento] sĂŁo basicamente parábolas, nĂŁo histĂłria", diz Crossan. De acordo com Mateus, JosĂ© soube num sonho que Maria daria Ă luz um menino concebido pelo EspĂrito Santo. Quando Jesus nasce, magos surgem do Oriente e seguem uma estrela que os conduz a JerusalĂ©m. Lá, eles ficam sabendo que o Cristo nasceu em BelĂ©m. Seguindo a estrela, os magos chegam Ă cidade para adorar o menino e lhe regalam com ouro, incenso e mirra. Mas Herodes fica perturbado com o nascimento e manda soldados matarem todos os bebĂŞs de atĂ© 2 anos em BelĂ©m. Assim, JosĂ© foge com a famĂlia para o Egito e depois vai morar em NazarĂ©, na Galileia, onde Jesus Ă© criado.
"NĂŁo há nenhum relato, em qualquer fonte antiga, sobre o rei Herodes massacrar crianças em BelĂ©m, ou em seus arredores, ou em qualquer outro lugar. Nenhum outro autor, bĂblico ou nĂŁo, menciona isso", diz o teĂłlogo americano Bart D. Ehrman no livro Quem Foi Jesus? Quem Jesus NĂŁo Foi?
No relato de Lucas, o anjo Gabriel vai Ă casa de Maria, em NazarĂ©, e lhe avisa que daria Ă luz um futuro rei. E que o "Filho de Deus" se chamaria Jesus. Maria era uma virgem prometida a JosĂ©, e o anjo lhe explicou que o filho seria gerado pelo EspĂrito Santo. Lucas diz que naquela Ă©poca, "quando Quirino era governador da SĂria", um decreto do imperador Augusto obrigou os sĂşditos a se registrar no primeiro censo do ImpĂ©rio. Todo mundo devia retornar Ă cidade de origem para se alistar. Como os ancestrais de JosĂ© eram de BelĂ©m, ele foi com Maria grávida para lá. Jesus nasceu em BelĂ©m pouco depois, e foi envolvido em panos na manjedoura. Lá o menino recebeu a visita de pastores e foi circuncidado aos 8 dias, para depois passar a infância em NazarĂ©.
"Os problemas históricos em Lucas são ainda maiores", diz Ehrman. "Temos registros do reinado de Augusto, e em nenhum deles há referência a um censo para o qual todos teriam de se registrar retornando ao lar dos ancestrais."
Ok, mas afinal por que Mateus e Lucas fazem Jesus nascer em Belém? Bom, de acordo com uma profecia do livro de Miqueias, do Antigo Testamento, o salvador viria de lá. Por que de lá? Porque era a cidade do rei Davi, o mais lendário dos soberanos de Israel.
Depois que o general Pompeu invadiu a Judeia, em 63 a.C., e fez dela provĂncia do ImpĂ©rio Romano, os profetas passaram a dizer que um rei da linhagem de Davi inauguraria o "reino de Deus". Chamavam essa figura de "o ungido" - já que Davi e outros reis israelitas haviam sido ungidos com Ăłleo. Os Evangelhos foram escritos em grego, o inglĂŞs da Ă©poca. E em grego "ungido" Ă© christos. O Cristo tinha que nascer em BelĂ©m. Yeshua provavelmente era de NazarĂ© mesmo.
Os Evangelhos, por sinal, sĂŁo obra de autores desconhecidos. É apenas uma convenção dizer que foram escritos por Marcos (secretário do apĂłstolo Pedro), Mateus (o coletor de impostos), JoĂŁo (o "discĂpulo amado") e Lucas (o companheiro de viagem de Paulo). AlĂ©m disso, os escritores nĂŁo foram testemunhas oculares. "O autor de Marcos escreveu por volta do ano 70. Mateus e Lucas, de 80. E JoĂŁo, no final dos 90", diz Karen Armstrong. E claro: "Eram cristĂŁos. Eles nĂŁo estavam imunes a distorcer as histĂłrias Ă luz de suas crenças", diz Ehrman. Afinal, "evangelho" deriva da palavra grega euangĂ©lion, que significa "boas novas". O objetivo dos autores nĂŁo era escrever a biografia de Jesus, e sim propagar a nova fĂ©. Levando isso em conta, chegamos a outra polĂŞmica: os anos considerados como os mais conhecidos da vida de Jesus tambĂ©m sĂŁo cheios de episĂłdios misteriosos. Vejamos.
Yeshua sai da vida para entrar na BĂblia
Talvez tenha sido em busca de audiĂŞncia que Yeshua rumou com os discĂpulos da Galileia para JerusalĂ©m, por volta do ano 30 d.C. Depois de 3 anos pregando na periferia, já seria hora de atuar no palco principal.
Jerusalém era o pivô do fermento espiritual judaico, e milhares de judeus iam para lá na Páscoa. Os Evangelhos nos dizem que Jesus causou um tumulto no local, destruindo as banquinhas de câmbio (que trocavam moedas estrangeiras dos romeiros por dinheiro local cobrando uma comissão), já que seria uma ofensa praticar o comércio em pleno Templo de Jerusalém, o lugar mais sagrado da Terra para os judeus. Por perturbar a ordem pública, ele foi condenado à cruz. Parece historicamente sólido, mas o episódio central do Novo Testamento também é fonte de reinterpretações.
No julgamento, por exemplo, a multidĂŁo teria pedido que Barrabás, um assassino, fosse solto em vez de Jesus - já que era "costume" da Páscoa. Esse costume, porĂ©m, nĂŁo Ă© mencionado em nenhum lugar, exceto nos Evangelhos. AlĂ©m disso, Jesus pode nĂŁo ter sido exatamente crucificado, mas "arvorificado". É a teoria (controversa, Ă© verdade) do arqueĂłlogo Joe Zias, da Universidade Hebraica de JerusalĂ©m. Suas pesquisas indicam que as vĂtimas dos romanos eram mais comumente crucificadas em árvores, pregando uma tábua de madeira no tronco para prender os braços do condenado. Seja como for, nĂŁo há por que duvidar de que ele tenha sido executado. Roma usava e abusava do expediente para tentar manter o controle das regiões que conquistava. Segundo Flávio Josefo, historiador judeu do sĂ©culo 1, numa sĂł ocasiĂŁo 2 mil judeus foram executados
A histĂłria de Jesus nĂŁo acaba aĂ, claro. "Alguns discĂpulos estavam convencidos de que ele ressuscitara. E que sua ressurreição anunciava os Ăşltimos dias, quando os justos se reergueriam das tumbas", diz Armstrong. Para esses judeus cristĂŁos, Jesus logo retornaria para inaugurar o novo reino. O lĂder do grupo era Tiago, irmĂŁo de Jesus, que tinha boas relações com fariseus e essĂŞnios. E o movimento se expandiu. Quando Tiago morreu, em 62, JerusalĂ©m vivia o auge da crise polĂtica. Em 66, romanos perseguiram os judeus com medo de uma insurgĂŞncia. Os zelotes se rebelaram e conseguiram manter as tropas do ImpĂ©rio afastadas por 4 anos. Com medo de que a rebeliĂŁo judaica se espalhasse, Roma esmagou os revoltosos. Em 70, o imperador Vespasiano sitiou JerusalĂ©m, arrasou o Templo e deixou milhares de mortos.
"NĂŁo temos ideia de como seria o cristianismo se os romanos nĂŁo tivessem destruĂdo o Templo", diz Armstrong. "Sua perda reverbera ao longo dos livros que formam o Novo Testamento. Eles foram escritos em resposta Ă tragĂ©dia."
Para os pesquisadores, entĂŁo, os textos sagrados refletem a realidade da Judeia do final do sĂ©culo 1 - e nĂŁo a do inĂcio, a que Jesus viveu de fato. Por exemplo: Barrabás personificaria os sicários, judeus que saĂam armados de punhais para matar romanos na calada da noite, como uma forma de vingança pela destruição do Templo. E que por isso mesmo eram assassinos amados pela população.
Quer dizer: Barrabás seria um personagem tĂpico da dĂ©cada de 70 d.C., inserido no episĂłdio da morte de Jesus, fato que aconteceu na dĂ©cada de 30 d.C, num momento em que o Ăłdio aos romanos e o louvor a quem se dispusesse a matá-los nĂŁo eram tĂŁo violentos.
AtĂ© a Ă©poca em que os Evangelhos foram escritos, o movimento de Jesus era apenas um entre as várias seitas judaicas. Os primeiros cristĂŁos se diziam "o verdadeiro Israel" e nĂŁo tinham intenção de romper com a corrente principal do judaĂsmo. Mas tudo mudou com a destruição do Templo.
Ela intensificou a rivalidade entre as facções judaicas. "Em sua ânsia por alcançar o mundo gentio (o dos nĂŁo-judeus), os autores dos Evangelhos estavam dispostos a absolver os romanos da execução de Jesus e declarar, com estridĂŞncia crescente, que os judeus deviam carregar a culpa", diz Armstrong. JoĂŁo, o Evangelho mais virulento, declara que os judeus sĂŁo "filhos do Diabo" (JoĂŁo 8:44). AtĂ© o autor de Lucas, que tinha uma visĂŁo mais positiva do judaĂsmo, deixou claro que havia um bom Israel (os seguidores de Jesus) e um Israel mau - os fariseus.
A rixa com os fariseus tem lĂłgica, já que eram competidores diretos dos judeus cristĂŁos. "Num extremo do judaĂsmo estavam os saduceus, a ala mais conservadora. No outro, os essĂŞnios, a mais radical. Já os fariseus e os judeus cristĂŁos estavam no meio. Eles lutavam pela mesma coisa: a liderança do povo, que estava entre as duas pontas", diz Crossan.
NĂŁo Ă© surpresa, aliás, que os livros do Novo Testamento contenham tantas contradições entre si. "Quando os editores finais do Novo Testamento juntaram esses textos, no inĂcio da Idade MĂ©dia, nĂŁo se incomodaram com as discrepâncias. Jesus havia se tornado um fenĂ´meno grande demais nas mentes dos cristĂŁos para ser atado a uma Ăşnica definição", diz Armstrong. Os Evangelhos atribuĂdos a Marcos, Lucas, Mateus e JoĂŁo seriam finalmente selecionados para o cânon da Igreja. Dezenas de outros evangelhos ficaram de fora.
SĂł no sĂ©culo 2, quase 100 anos apĂłs a morte de Jesus, começam a aparecer relatos sobre ele no centro do ImpĂ©rio. Um deles Ă© uma carta do polĂtico romano PlĂnio ao imperador Trajano. PlĂnio cita pessoas conhecidas como "cristĂŁs" que veneravam "Cristo como Deus". Outra fonte Ă© o historiador romano Tácito, que menciona os "cristĂŁos (...), conhecidos assim por causa de Cristo (...), executado pelo procurador PĂ´ncio Pilatos". SuetĂ´nio, que escreveu pouco depois de Tácito, informa sobre uma perseguição de cristĂŁos, "gente que havia abraçado uma nova e perniciosa superstição". Uma "superstição" cuja mensagem convenceria cada vez mais gente, a ponto de, no sĂ©culo 4, o imperador romano em pessoa (Constantino, no caso) converter-se a ela. E o resto Ă© histĂłria. Uma histĂłria que chega ao seu segundo milĂŞnio. Com 2 bilhões de seguidores.
Lost Years
Antes dos 30, Jesus provavelmente teve a mesma formação religiosa dos judeus de sua época. Ou seja: seguia outro Jesus. Outro profeta.
16 anos
O jovem Yeshua (Jesus, em aramaico) tinha 4 irmãos homens e pelo menos duas irmãs mulheres. E cresceu na cidade onde nasceu: Nazaré.
20 anos
Ele pode não ter sido carpinteiro, mas pedreiro. O engano de 2 mil anos seria culpa de um erro de tradução.
28 anos
Na BĂblia, o profeta JoĂŁo apenas batiza Cristo. O mais provável, porĂ©m, Ă© que ele tenha sido o grande mentor do jovem Yeshua.
33 anos
Os romanos crucificavam em massa. E também usavam árvores como base. Esse pode ter sido o cenário da morte de Jesus.
Fonte: Revista Super Interessante. Edição 293 - Julho de 2011.
Texto de Eduardo Szklarz e Alexandre Versignassi.
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