Vivemos numa sociedade que abomina a realidade do sofrimento. Por todos os meios tenta negar a sua existĂŞncia. Muitos sĂŁo os meios empregados, desde a alienação das drogas lĂcitas e ilĂcitas, Ă s tĂ©cnicas psicolĂłgicas e Ă s indĂşstrias do cosmĂ©tico e entretenimento. TambĂ©m religiões tradicionais falam do absurdo do sofrimento como uma contradição da existĂŞncia humana em face de seu propĂłsito em ser feliz.
A cultura contemporânea acusa o Cristianismo de ter glorificado o sofrimento, dizem que nĂŁo faz bem para a alma ser confrontada, por meio da cruz, com os lados desagradáveis da vida. Por isso, infelizmente, no contexto cristĂŁo, ou pelo menos, que se faz passar por cristĂŁo, nĂŁo poucas expressões eclesiásticas tambĂ©m anatematizam o sofrimento e a imagem da cruz. Reputam o sofrimento sempre como uma ação demonĂaca, ou na maioria das vezes, oprimem os fieis reputando Ă falta de fĂ© e de obediĂŞncia Ă Deus o sofrimento experimentado.
Claro, os demônios tem poder limitado e limitada liberdade para impingir certos tipos de sofrimentos. A incredulidade e a desobediência também trazem consigo os sofrimentos que lhes são próprios. Mas, o fato é que, o sofrimento faz parte da contingência humana.
Todos seremos acometidos pelo “absurdo” do sofrimento, da contradição unilateral dos elementos desta existĂŞncia que escapam Ă nossa vontade ou controle. Se o sofrimento fosse apenas uma simples questĂŁo de falta de fĂ© ou desobediĂŞncia, o que terĂamos a dizer de Paulo, EstĂŞvĂŁo, Pedro e todos os mártires que regaram o chĂŁo da Igreja com o seu sangue?
Precisamos redescobrir a espiritualidade da cruz como linguagem para entender e integrar o sofrimento como parte essencial na formação de nosso caráter, mas também como marca de genuinidade de nossa fé vivida na contramão dos valores e das medidas deste mundo.
Os cristãos antigos perguntavam menos pela razão do sofrimento. Para eles, fazia parte de sua existência no mundo. Mas eles viam na cruz uma ajuda para passar pelo sofrimento sem perecer. A cruz os fortalecia e lhes dava a esperança de que não haveria sofrimento definitivo.
Ainda que a cruz termine na morte, ela aponta para a ressurreição, para a transformação do pior sofrimento possĂvel em nova vida, em vida indestrutĂvel. Assim entendemos que o sofrimento entendido na perspectiva da cruz de Cristo Ă© a realidade que cruza e contraria diariamente nosso caminho e nossa vida para quebrar as ideias erradas que construĂmos em relação a nĂłs mesmos, corroborando assim para a nossa maior identificação com Cristo. É aquela nova criação para a qual valem outras medidas, que nĂŁo as de uma existĂŞncia puramente mundana, que precisa se orientar pelas leis desumanas deste mundo caĂdo.
O mundo, com suas medidas e seus parâmetros de desempenho, reconhecimento e felicidade, já nĂŁo tem poder sobre nĂłs. O sofrimento recebido na sabedoria da cruz Ă© um sinal da graça de Deus e um protesto contra as nossas tentativas de redimir-nos a nĂłs mesmos e de comprar a nossa salvação com o desempenho prĂłprio. O sofrimento nos coloca em nosso lugar: criaturas incapazes que dependem da Graça de Deus. Se nĂŁo fossem as contradições da vida e se tudo fosse sĂł sucesso, facilmente nos idolatrarĂamos a nĂłs mesmos, como tantos fazem por aĂ, como “Narcisos” incensando a prĂłpria vaidade.
Por mais absurdo que possa soar aos nossos ouvidos aburguesados, a espiritualidade da cruz Ă© a chave para a verdadeira vida. Longe de nĂłs desejarmos o sofrimento, ou atraĂ-lo, ou produzi-lo gratuitamente (isto seria uma blasfĂŞmia e negaria a prĂłpria verdade e utilidade da cruz no gracioso plano redentor do Pai). Mas longe de nĂłs tambĂ©m negar ou nĂŁo acolher a realidade do sofrimento, categorizando-o como absurdo.
Aprendamos dos antigos cristĂŁos:
“Teu Senhor nĂŁo foi pregado no poste da cruz? Tu deves imitar o teu Senhor! Se amas teu Senhor, entĂŁo morre a mesma morte que ele e faze o caminho do apĂłstolo: ‘O mundo foi crucificado para mim, e eu para o mundo.’ (Gl 6.4). Por mundo entenda: elogio humano, poder e sucesso exterior, fama, riqueza, luxĂşria, bebedices e glutonerias, fofocas e maledicĂŞncias...Crucifica-te para estas coisas” (JoĂŁo CrisĂłstomo).
“E, assim, quando sofrer, que seja por fazer o bem, ou, para te fazer bem” (Tertuliano).
Não existe Cristo sem crucificação. Não existe cristão sem Cruz!
Rev. Luiz Fernando dos Santos
Por Litrazini
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